Escrito por Laerte Levai
1. Introdução
A domesticação dos animais e seu uso pelo homem remonta a tempos longínquos. Nas sociedades primitivas a marca desse domínio ficou registrada nos desenhos rupestres simbolizando a caça de bisões, mamutes e renas, sendo que os mais remotos vestígios de sedentariedade humana coincidem com a sujeição de cães, carneiros, bodes, bois, porcos, cavalos, iaques, camelos e alguns tipos de aves.
Depois, quando o homem se curvou aos deuses do Olimpo e aos santos das Escrituras, a concepção de mundo tornou-se mítica, relacionando criador e criatura a guisa de imagem e semelhança, respectivamente,de modo a sacramentar a hegemonia de nossa espécie em detrimento das outras.A era das conquistas territoriais e das grandes navegações permitiu aos países colonialistas não apenas a subjugação dos povos vencidos, mas a matança indiscriminada de animais visando ao lucro ou seu aprisionamento para servir a cortejos exóticos, circos e zoológicos. O cão, lobo domesticado, tornar-se-ia o mais fiel companheiro do homem, enquanto que o gato carregaria em si o estigma das superstições medievais. Originalmente esporte da nobreza, a caça difunde-se pelas classes sociais e firma-se como um dos mais pusilânimes entretenimentos humanos. Os costumes da cultura popular, como a secular tourada espanhola e os rituais de matança coletiva de carneiros nas festividades muçulmanas, transformam martírio em tradição.Até o início do século passado cavalos e jegues eram utilizados, de maneira impiedosa, nos serviços de tração e transporte de pessoas, enquanto que os bovinos moviam, no campo, o sistema agropastoril de produção alimentar.Após a Segunda Guerra Mundial,o avanço da industrialização e as descobertas tecnológicas romperam, de vez, com o modelo tradicional de criação de animais, quando o modelo campestre cedeu vez à perversa metodologia utilizada pela indústria do agronegócio, na qual vacas, bois, porcos, patos, galinhas, carneiros e outros tantos animais destinados ao consumo humano padecem em silêncio. Na área científica, igualmente,a experimentação animal atinge níveis assombrosos, submetendo milhões de animais a tormentos inomináveis, sob a cômoda justificativa de servir ao progresso da humanidade.
Foi no século XX, apenas, que se firmaram pelo mundo as leis de proteção aos animais. No Brasil, especificamente, a vedação à crueldade proclamada no decreto federal 24.645/34,tornou-se
contravenção penal (art. 64 da LCP) e, depois, crime ambiental (art. 32 da Lei 9.605/98), ganhando respaldo constitucional em nossa atual Carta Política (art. 225 § 1o, VII). Não obstante isso, a situação da chamada fauna doméstica ou domesticada, em plena era da globalização, é desoladora. Afora a pequena parcela de animais de estimação que, na companhia de seus tutores,tem uma vida digna e sem sobressaltos, a restante é criada sob o signo do sofrer. Basta um olhar crítico sobre o que acontece nas fazendas industriais, nos laboratórios científicos,nos centros de controle de zoonoses e nas companhias de diversões públicas para concluir que a crueldade, quando justificada pelo uso do animal, acaba tendo – aparentemente – respaldo legal. Não é exagero dizer que, no Brasil,99% das hipóteses de sofrimento animal (maus tratos, abusos, ferimentos ou mutilações), está na indústria dos matadouros, nas atividades de vivissecção e na política pública de extermínio, além daquela perfazida em eventos supostamente culturais e recreativos (farra do boi, rodeios, vaquejadas, circos, zoológicos, caça e pesca esportiva, etc).
O uso econômico do animal e a chamada finalidade recreativa da fauna, embora atividades contrárias à moral e à ética, buscam respaldo em diplomas permissivos de comportamentos cruéis, como por exemplo, na lei do Abate Humanitário,na lei da Vivissecção,na lei dos Zoológicos,no Código de Caça e de Pesca, na lei da Farra do Boi e na lei dos Rodeios.Acima de todas elas, porém, está a Constituição Federal, cujo artigo 225 §1o, VII obriga o poder público a coibir a submissão de animais a atos de crueldade.Um preceito que, longe de vincular a proteção à fauna apenas enquanto bem ambiental, estende sua tutela a todos os animais, indiscriminada e individualmente, sejam eles silvestres, nativos ou exóticos, domésticos ou domesticados, terrestres ou aquáticos.
Incumbe ao Ministério Público, como guardião do meio ambiente e curador dos animais, zelar pela fiel aplicação desta norma protetora suprema, lutando para que nenhuma lei infraconstitucional legitime a crueldade, que nenhum princípio da ordem econômica justifique a barbárie, que nenhuma pesquisa científica se perfaça sem ética e que nenhum divertimento público ou dogma religioso possam advir de costumes desvirtuados ou de rituais sanguinolentos. Porque toda criatura tem o direito de viver dignamente e sem sofrimentos inúteis, como já o sabiam Pitágoras, Plutarco, Montaigne, Jeremy Benthan, Arthur Schopenhauer, Cesare Goretti, Piero Martinetti e tantos outros pensadores cujo legado de benevolência e compaixão aos animais que sofrem inspirou, na atualidade,as idéias filosóficas de Peter Singer, Tom Regan, Jane Goodall, Silvana Castignone, Leonardo Boff, etc. Contra a injustiça,a hipocrisia social, as tradições cruentas e os subterfúgios jurídicos que permitem esse autêntico massacre de seres inocentes, deve o Ministério Público insurgir-se. Os instrumentos legais da ação civil pública e do inquérito civil, assim como dos procedimentos verificatórios, das peças de informação e dos termos de ajustamento de conduta,surtem bons efeitos no campo preventivo, reparatório e pedagógico. Caso o delito já se tenha consumado, de modo irreversível, medidas penais transformadas em transação penal, suspensão processual ou prestação de serviços à coletividade,mediante atividades ressocializadoras e/ou educativas,podem contribuir para que a Justiça encontre seus verdadeiros fins.
2. Conflito aparente de normas
O Brasil é um dos poucos países do mundo a tratar do tema da crueldade para com os animais em nível constitucional. A norma protetiva inserta no art. 225 § 1o, inciso VII, de nossa atual CF, que incumbe ao poder público”proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade”,inspirou o legislador ordinário ambiental a criminalizar, no artigo 32 caput da Lei 9.605/98, todo aquele que “praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. A maioria das constituições estaduais, por sua vez, já havia acolhido a orientação suprema, como se vê na Carta Política paulista, cujo artigo 193, inciso X, estabelece que cabe ao Estado, “assegurada a participação da coletividade, proteger a flora e a fauna, nesta compreendidos todos os animais silvestres, exóticos e domésticos, vedadas as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica e que provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”. Conclui-se, diante disso tudo, que o nosso repertório legislativo é mais do que suficiente para, em tese, proteger os animais da maldade humana.
Importa definir, desde já, o que vem a ser essa conduta capaz de ocasionar dor, angústia ou sofrimento ao animal. Do ponto de vista lingüístico, a terminologia em questão – crueldade – reporta-se àquele que se compraz em fazer mal, em atormentar, em ser desumano, pungente, doloroso, sanguinolento (in Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1993).Segundo o professor Ernesto Faria, crudelis, -e, em seu sentido próprio, é aquele que se mostra ‘cruel, desumano, insensível’. Crudelitas, – tatis, por suja vez, significa ‘crueldade, desumanidade’(in Dicionário escolar latino português, FAE, Rio de Janeiro, 1985). Outro renomado lingüista brasileiro, o professor Antenor nascentes, escreveu que “Crueldade é a qualidade de cruel ou o ato cruel; sevícia é a crueldade ferina e, feralmente no plural, significa também maus tratos” (in Dicionário de sinônimos, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1981). Trata-se a crueldade, portanto, de uma expressão genérica que contém em si outras modalidades de violência (abusos, maus tratos,ferir e mutilar). Abuso significa uso incorreto, despropositado, indevido, demasiado, de modo a infligir sofrimento ao animal. Maus tratos, por sua vez, é um vocábulo que se subsume no sentido de sevícia, independentemente da ocorrência de lesões físicas, relacionando-se ao rigor, à dureza ou à indiferença. Já a inflição de ferimentos ou a prática de mutilação têm natureza material, porque se consuma lesionando o corpo ou, então, seccionando órgão ou membro do animal.
Em termos científicos, a avaliação da dor nos animais é feita de forma analógica, mediante observações neuroanatômicas e comportamentais. Para a professora emérita titular da cadeira de Anatomia da USP, Irvênia Luiza de Santis Prada, a organização morfofuncional dos mamíferos e seu Sistema Nervoso estruturam-se segundo um modelo comum. Segundo ela, “a Etologia (estudo do comportamento) vem demonstrando que, diferentemente do que pensávamos, o psiquismo dos animais é muito rico. Fazem parte do conteúdo psíquico dos animais, a vivência de sensações, sentimentos e sofrimentos que, particularmente por meio do sistema límbico (conjunto de estruturas nervosas relacionadas à expressão de comportamentos acompanhados de emoção) e o sistema nervoso autônomo (simpático e parassimpático), manifestam-se no organismo, caracterizando os chamados sinais fisiológicos”. Inegável que o animal, diante de uma situação opressiva,procura reagir às agressões que lhe são impingidas.Muitos bichos silvestres, caso sobrevivam à caçada, morrem de tristeza no cativeiro, porque seu sistema imunológico enfraquece demasiadamente. Outros se tornam apáticos, atrás das jaulas dos zoológicos. No circo, eles executam seu número forçados pela lembrança de um condicionamento cruel.Já os animais domésticos, que há milênios vêm sendo subjugados pelo homem, têm como destino o matadouro (bois, vacas, porcos,galinhas, carneiros, etc, que servem à alimentação), o labor (cavalos, jumentos, bois-de-carro, etc, nos serviços de transporte e tração), a guarda (cães utilizados como vigias), o divertimento público (touros,bois, cavalos, etc., submetidos a cruentas montarias e às provas de laço), o deleite humano (aves em gaiola), a pesquisa científica (rãs, ratos e cães destinados à vivissecção), dentre outras tantas atividades que lhes acarreta notório padecimento físico ou mental.
Em face da vigência daqueles preceitos legais no plano constitucional e ordinário poder-se-ia acreditar que a voluntária inflição de sofrimento aos animais estaria, em tese,vedada no território brasileiro. Doce ilusão. Vigência não se confunde com eficácia.É que os aparentes conflitos de normas e as leis permissivas de comportamentos cruéis, diante de uma economia capitalista impregnada pelo estilo antropocêntrico de viver, acabam ‘legitimando’ a exploração animal. Embora permitida pelo Direito, à milenar ação escravagista do homem sobre o animal será sempre, do ponto de vista filosófico, uma prática injusta,principalmente quando oprime, agride, tortura ou mata. A conveniência humana, ainda que justificada pelo prazer gastronômico, pela estética da vaidade, pelo divertimento público, pelas crenças religiosas e pela suposta verdade científica, acaba preponderando sobre o destino dos animais subjugados. Vale aqui lembrar, como exemplo de genocídio animal consentido, o que acontece diariamente nos matadouros e frigoríficos, nas granjas de produção industrial, nos centros de controle de zoonoses e nos laboratórios de experimentação científica. Também nos criadouros comerciais, nas fazendas de criação intensiva e nas áreas em que a caça amadora é permitida,os animais ali mantidos são previamente condenados à morte. Já a propalada função recreativa da fauna impinge sofrimento a milhares de outros animais, domésticos ou selvagens,utilizados em rodeios, vaquejadas, circos e zoológicos. Um cenário deprimente, em que o animal jamais é considerado por sua individualidade ou por sua capacidade de sofrer, mas em função daquilo que pode render – em termos monetários ou políticos – àqueles que os exploram.
Não é à toa que, para o direito civil, o animal é coisa ou semovente; no direito penal, objeto material; no direito ecológico, bem ambiental de uso comum do povo.No jargão do agronegócio, bois e vacas perdem sua condição natural de seres sencientes para se tornarem rebanho, plantel, cabeças, peças ou matrizes; no circo, leões, macacos,tigres e ursos adestrados são protagonistas do triste espetáculo da dominação humana; nos depósitos municipais os cães recolhidos das ruas, mesmo sendo dóceis ou sadios, acabam sendo sacrificados em razão de seu risco potencial à saúde pública; nas mesas dos centros de pesquisa científica, coelhos, camundongos, rãs, cães e hamsters são considerados, todos eles,simples cobaias. E assim por diante,a dialética da opressão faz com que os animais permaneçam sempre curvados às vicissitudes históricas, culturais, políticas e econômicas dos povos, sofrendo violências atrozes e desnecessárias. A lei ambiental brasileira, tida como uma das mais avançadas do planeta, parece ignorar o destino cruel desses milhões de animais que perdem a vida nos matadouros, nos laboratórios e nos galpões de extermínio, que tanto sofrem nas fazendas de criação, nos picadeiros circenses e nas arenas públicas ou, então, que padecem em gaiolas ou em cubículos insalubres, para assim atender aos interesses do opressor. Existe uma barreira conceitual que impede aos homens de enxergar uma verdade cristalina. O sabor da carne, a ditadura da vaidade e os falsos mitos da saúde pública contribuem para erguer esses gigantescos muros invisíveis.
Condicionar a crueldade à submissão dos animais ao sofrimento inútil ou desnecessário é, de certa forma, negar à natureza um valor em si, como se tudo o que existe no mundo gravitasse em função do interesse humano. Estar-se-ia, assim, separando o homem da natureza, para torná-lo espécie desfrutadora e transformadora do meio natural. A noção de crueldade, nesse contexto, submeter-se-ia às regras do utilitarismo, de modo que a conduta cruenta somente se caracterizaria como tal se o homem assim o dispusesse. Embora algumas fórmulas e expressões ecológicas impregnadas de dubiedade – desenvolvimento sustentável, garantia da sadia qualidade de vida, manifestação da cultura do povo, atividade cultural e prática necessária ou socialmente consentida – possam, de certa forma, sustentar o discurso antropocêntrico dominante, sua tônica não resiste ao confronto filosófico. Segundo a professora Sônia T. Felipe, da Universidade Federal de Santa Catarina, “Ao dizermos que animais devem ficar excluídos de nosso horizonte moral, por não serem capazes de firmar ou de cumprir contratos, estamos apenas reduzindo o âmbito moral aos parâmetros do mercado”(discurso apresentado em mesa-redonda sobre o uso de animais, na UFSC, em 18.06.1999). Há mais de dois séculos, na Inglaterra, o jurista Jeremy Benthan já afirmava não ser a razão ou a linguagem que tornam os seres dotados de sensibilidade dignos de nossa consideração ética, mas sim a sua capacidade de sofrimento (in ‘Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação’, 1879). Já o filósofo alemão Arthur Schopenhauer escreveu que a piedade, princípio de toda a moralidade, não depende de idéias preconcebidas, de religiões, de dogmas, de mitos, de educação ou da cultura, tomando os animais sob o seu manto protetor: “Insistir na suposta inexistência de direito dos animais,como se nossa conduta para com eles não tivesse importância moral, porque deveres humanos em relação aos animais inexistem, é agir de modo preconceituoso e comum a ignorância revoltante” (in‘Dores do Mundo’, Rio de Janeiro, Ediouro). O professor Cesare Goretti, que lecionava Filosofia do Direito na Universidade de Ferrara, Itália, observou que os animais, quando domesticados, participam do ordenamento jurídico humano, surgindo daí nosso dever legal e moral, principalmente, de não tratá-los com brutalidade: “Se não podemos negar a eles um princípio de moralidade (companheirismo, gratidão, amizade), que razão temos em recusar sua participação em nossa ordem jurídica, que é apenas um esfera da moral? (in ‘L´animale quale soggeto di diritto”, Rivista di Filosofia, n. 19, Itália, 1928).
Nosso Direito Ambiental, ao contrário do que possa parecer à primeira vista,não se limita a proteger a vida do animal em função dos chamados bons costumes, do equilíbrio ecológico ou da sadia qualidade de vida. A noção de crueldade, longe de permanecer afeita apenas à saúde psíquica do homem, é universal.Ações agressivas e dolorosas recaem sobre um corpo senciente,não sobre um conceito abstrato relacionado ao bem-estar da espécie dominante. Afinal, para os seres desprovidos capacidade de abstração ou esperança, o universo da dor torna-se amplo, contínuo, permanente. Sua sensação é traduzida pela angústia e pelo sofrimento, ainda que não possamos compreendê-la em plenitude.Ao dispor expressamente sobre a vedação à crueldade, o legislador pátrio erigiu um dispositivo de cunho moral que se volta, antes de tudo, ao bem estar do próprio animal e, secundariamente, da coletividade.
Apesar de sua acentuada feição antropocêntrica, a Constituição da República tem o propósito de conciliar o desenvolvimento econômico, o bem estar humano e o meio ambiente sadio, assumindo – sob certos aspectos – caráter biocêntrico.Há, assim, uma limitação ao princípio geral da atividade econômica previsto no art. 170, VI, da CF, que prega a observância da ética em toda atividade que envolver a exploração da natureza e dos animais. Outros princípios constitucionais informam a política brasileira de proteção à fauna, a saber: a) da legalidade: enquanto é lícito ao particular fazer tudo o que a lei não veda, à Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza (art. 70 caput da CF), de modo que a matança de animais não nocivos à saúde ou à segurança social fere esse princípio; b) da moralidade: condenar à morte um animal saudável, pelo fato dele não pertencer a ninguém, é o mesmo que admitir que sua vida só tenha valor se, de alguma forma, servir ao interesse humano; c) da educação ambiental: o poder público deve ensinar as pessoas a respeitar o meio ambiente e os animais, conforme preconizado no art. 225 caput da CF); d) da precaução: os objetivos do Direito Ambiental, também nas questões relacionadas aos animais, exigem ações preventivas, mesmo porque o sofrimento e a morte são irreparáveis.Não é, infelizmente, o que se vê na prática, em que o animal maltratado acaba tendo seu martírio quase que admitido pelo poder público. Contra o comodismo desse triste estado de coisas e contra a mais injusta e cruel das escravidões,o Ministério Público – instituição devidamente credenciada,do ponto de vista histórico, legal e técnico,para exercer a tutela dos interesses difusos – pode emprestar voz àqueles que não têm como se defender (princípio da representação).
Inexiste, pois, o suposto conflito de normas (princípios econômicos x bem-estar dos animais, liberdade de religião e culto x garantia anticrueldade,meio ambiente natural x meio ambiente cultural, direito à pesquisa x recursos substitutivos, etc). A legislação brasileira – independentemente de seu pretenso contexto ecológico – protege os animais todos, colocando-os a salvo de maus tratos e crueldades, direito esse projetado no âmbito constitucional. Não se pode aceitar, em hipótese alguma, a vigência de normas jurídicas ou sanitárias que contrariem o preceito magno que veda a crueldade para com os animais. O que se vê, em meio à sociedade globalizada pela indiferença, é um autêntico massacre consentido, em que a essência de determinadas leis relacionadas a animais acabou contaminada pela insana lógica capitalista perante a qual seres vivos transformam-se em carcaças, a Moral sucumbe e o Direito se torna injusto.
3. Ética anticrueldade
Em auspicioso ensaio científico-filosófico tratando da dor em animais, o professor Bernard E. Rollin, que leciona Filosofia na Universidade do Colorado/EUA, chegou a uma conclusão desoladora: 99% do sofrimento animal provêm da crueldade deliberada. Isso significa, a contrario sensu, que apenas 1% das situações de crueldade para com os animais acabam sendo coibidas pela lei. Tal constatação, infelizmente, é verdadeira. Basta que se examine as estatísticas de diversos setores produtivos que se utilizam de animais, no campo ou na cidade.No ramo do agronegócio, somente no Estado de São Paulo, a cada dia milhares de animais são confinados, descornados, queimados, degolados, eletrocutados, escalpelados e retalhados para servir à indústria da carne. É comum, nas chamadas fazendas de criação, que a propriedade do bovino seja proclamada, a ferro quente, na pele do animal. Os cortes de cauda nas ovelhas, a extração dos dentes dos suínos, as debicagens nas galinhas e as castrações de bois e cavalos, tudo sem anestesia, constituem outras práticas inegavelmente cruentas, porém, toleradas pela lei. Isso sem falar no perverso sistema de confinamento, na dieta com hormônios para agilizar o processo de engorda e, por fim, depois de um indigno transporte aos matadouros ou abatedouros, quando os animais são amontoados nas carrocerias dos caminhões,a derradeira agonia da morte anunciada. Alega-se, para justificar tamanho morticínio, o argumento do mal necessário, que se perfaz mediante modernos métodos de matança (pistola de concussão cerebral, eletronarcose e gás CO2), apoiados pelo discurso em prol do abate humanitário, o qual é respaldado pela Organização Mundial da Saúde. Vale dizer que este tipo de entidade, a OMS,está imersa na ideologia científica dominante, tanto que a definição de dor aceita pela Sociedade Internacional para o Estudo da Dor parte do pressuposto que apenas os seres com linguagem articulada são capazes de senti-la. Evidente que, por essa linha de argumentação, ciência e ética caminham em direções opostas, tanto que as leis surgidas com motivação científico-industrial ressentem-se do necessário componente moral.
De fato, em determinados matadouros-frigoríficos, como o de Bauru e o de Araçatuba, o abate ritual impede que os bovinos recebam prévia insensibilização. Suspensos em correntes e sangrados vivos, segundo os preceitos religiosos que regem a jugulação cruenta, esses animais experimentam atroz sofrimento até que lhes sobrevenha a morte. Há no Brasil 172 milhões de bovinos sendo criados para o corte, parte dos quais se destinará ao abate religioso (o mais lucrativo de todos, porque serve à exportação). Triste saber que, embora tais métodos traduzam a crueldade em seu grau máximo, uma lei estadual paulista (Lei n. 10.470/99) alterou a eufemística lei do abate humanitário (Lei n. 7.705/92) justamente para atender aos interesses dos produtores da chamada carne branca, a qual seguirá, em regra,ao mercado israelita e muçulmano. Desse modo, uma lei espúria e flagrantemente inconstitucional – a famigerada lei da jugulação cruenta – vem legitimando a tortura de animais submetidos aos horrores do abate ritual. Se o Ministério Público, independentemente da fiscalização do SIF (Serviço de Inspeção Federal) não se inteirar do que acontece dentro dos matadouros para, conforme o caso, exigir providências administrativas (TAC)e/ou judiciais (ação civil ou penal) para sanar as irregularidades, a Justiça continuará cega e impassível diante de um genocídio que se pretende legal. Porque nenhum costume desvirtuado e nenhum dogma religioso sanguinolento podem se legitimar com base na tortura.
Outra impune crueldade ocorre nas atividades científicas relacionadas à experimentação com animais, dentre elas a vivissecção. Entende-se por experimentação animal todo e qualquer procedimento que utiliza animais, independentemente do emprego de anestesia, para fins científicos ou didáticos. Já a vivissecção, modalidade específica daquele gênero, consiste na dissecação de bichos vivos para estudos de natureza anatômica ou fisiológica. Seja como for, ambas trazem em si um acentuado componente de crueldade, porque submetem milhões de animais – a cada ano – a atos de violência: testes químicos, toxicológicos, comportamentais, psicológicos, cerebrais, dentários e até bélicos.
Essas experiências,invariavelmente macabras, foram descritas pela literatura antivivissecionista: sapos trepanados, ratos eletrocutados, gatos com eletrodos na cabeça, cães estraçalhados em prensas mecânicas, macacos intoxicados, coelhos queimados vivos, pombos submetidos à ação do gelo e cavalos inoculados com veneno constituem apenas alguns exemplos do vasto repertório de aberrações já cometidas pelos pesquisadores em nome da ciência. Aqui, a exemplo do que acontece na indústria da carne, a justificativa é idêntica: mal necessário. Que é um mal, ninguém duvida. Mas quem disse que, realmente, é necessário? Na realidade,cientistas e pesquisadores vêm incorrendo, há tempos, em um grave erro metodológico, ao adotar os animais como modelos experimentais do homem.
Em oportuna análise crítica desenvolvida sobre o tema, os biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz observaram que, nos séculos posteriores à Renascença, a experimentação com animais tornou-se ‘metodologia padrão de investigação científica e de ensino da medicina’, alicerçada pela filosofia teleológica, a qual sustenta que todas as coisas existem para o proveito humano e que a vida animal não tem valor algum, conceitos esses ‘absorvidos pela Igreja Católica e incorporados aos antigos fundamentos da ciência ocidental’ (in “A verdadeira face da experimentação animal’, Sociedade Educacional Fala Bicho, Rio de Janeiro, 2000).É o que se constata, lamentavelmente, no curso da história. Reforçada pelo mecanicismo de René Descartes (1596-1650) e pelo experimentalismo de Claude Bernard (1813-1878), os quais consideravam os animais criaturas insuscetíveis à dor física e que vieram ao mundo para servir ao homem, a postura antropocêntrica dominante ainda tem sido a causa principal da crise de valores que assola a humanidade.Ao negar aos bichos qualquer possibilidade de valoração ética, a doutrina cientificista se empolou em um pedestal inatingível, permitindo a insana ascensão do racionalismo e, paralelamente, do sistema capitalista de produção. Assiste-se, no cenário político moderno, a derrocada da concepção estóica da natureza, deslocando-se o eixo da ação do ser para o viver, da reflexão para a razão e do existir para o usufruir. A plenitude racionalista, possibilitando o amplo domínio humano sobre o planeta, propagou-se na cultura ocidental a ponto de buscar uma significação funcional para tudo o que existe. Sob os ditames da deusa-razão, o mundo se tornaria o mundo dos homens – usufrutuários da natureza e dos animais -, concepção essa que causou um inegável estreitamento dos nossos valores morais.
A lei ambiental brasileira, no que se refere ao exercício da experimentação, contém um dispositivo de suma importância que,se devidamente aplicado, poderia livrar milhares de animais da morte cruel e desnecessária. Trata-se do § 1o ao artigo 32 da Lei 9.605/98, que penaliza “quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”. Ora, se hoje a lei condiciona os experimentos à inexistência de métodos alternativos ao uso do animal, isso significa – conforme Greif & Trez – que, ao menos no plano teórico, a vivissecção foi proibida no Brasil. Afinal, técnicas alternativas à experimentação animal existem dentro e fora do País, dependendo seu desenvolvimento e utilização da boa vontade dos pesquisadores, o que nem sempre se observa na prática. A busca de um ideal aparentemente utópico, o de abolir toda e qualquer forma de experimentação animal, tanto na ciência como nas salas de aula, não permite o comodismo e nem o preconceito. Isso porque, a exemplo do que vem ocorrendo em diversos países da Europa, alternativas ao uso do animal em experiências já existem, bastando um pouco de boa-vontade aos pesquisadores para que essa nova metodologia possa substituir, a contento, os tradicionais e cruentos métodos de pesquisa.
Dentre os mais conhecidos recursos capazes de livrar os animais dos experimentos, podem ser relacionados: 1) sistemas biológicos in vitro (cultura de células, tecidos e órgãos passíveis de utilização em genética, microbiologia, bioquímica, imunologia, farmacologia, radiação, fisiologia, toxicologia, produção de vacinas, pesquisas sobre vírus e sobre câncer); 2) Cromatografia e espectometria de massa (técnica que permite a identificação de compostos químicos e sua possível atuação no organismo, de modo não-invasivo); 3) Farmacologia e mecânica quânticas (avaliam o metabolismo das drogas no corpo); 4) estudos epidemiológicos (permitem desenvolver a medicina preventiva com base em dados comparativos e na própria observação do processo de doenças); 5) estudos clínicos (análise estatística da incidência de moléstias em populações diversas); 6) necropsias e biópsias (métodos que permitem mostrar a ação das doenças no organismo humano); 7) simulações computadorizadas (sistemas virtuais que podem ser usados no ensino das ciências biomédicas, substituindo o animal); 8)modelos matemáticos (traduzem analiticamente os processos que ocorrem nos organismos vivos); 9) culturas de bactérias e protozoários (alternativas para testes cancerígenos e preparo de antibióticos; 10) uso da placenta e do cordão umbilical (para treinamento de técnica cirúrgica e testes toxicológicos); 11) membrana corialantóide (teste CAME, que se utiliza de membrana dos ovos de galinha para avaliar a toxidade de determinada substância); 12) pesquisas genéticas (estudos com DNA humano), etc.
Várias nações da Europa, atualmente, já utilizam técnicas substitutivas ao uso do animal em experiências, de modo a poupar os bichos de sofrimentos inúteis, mesmo porque os experimentos vivisseccionistas são, em regra, repetitivos e supérfluos,com resultados já conhecidos do pesquisador. A Comunidade Comum Européia, através do “Convênio Europeu sobre a Proteção de Animais Vertebrados Utilizados para fins de Experimentação’ (firmado em Estrasburgo, em 18/3/1986), dita essas normas de maneira conjunta, sem prejuízo das leis de proteção de cada comunidade e sem perder de vista o critério da real necessidade da experiência, caso inviabilizada a adoção de métodos alternativos. Na maioria dos países a experimentação animal é submetida a uma regulamentação restrita, seja através de pessoas, seja por meio de protocolos. Daí porque deveria ser obrigatório a toda faculdade de ciências médicas ou biológicas e a todo estabelecimento de pesquisa que porventura realizem experiências com animais, a submissão de seus projetos à prévia análise de comissões de ética, paritárias e imparciais,especialmente formadas para esse fim. E com a possibilidade de se adotar àqueles que se recusarem a participar do experimento, a cláusula da escusa de consciência à experimentação animal, de modo a preservar suas convicções pessoais sem o risco deles sofrerem reprimendas escolares ou administrativas.
No setor dos espetáculos públicos o sofrimento dos animais acaba sendo também respaldado pela lei, que pune não o uso, mas o abuso. É o que se vê nas práticas relacionadas a rodeios e vaquejadas, em que provas de laço e de montaria submetem bovinos e eqüinos a verdadeiro tormento.Sob o efeito compressivo do sedém – seja ele uma cinta de couro, seja uma corda americana, independentemente do material pelo qual é confeccionado –touros e cavalos alteram seu comportamento normal, pulando na arena para tentar se livrar daquilo que os oprime. A impressionante reação dos animais está associada à inflição de estímulos dolorosos em seus órgãos internos (genitália, sistema digestivo, nervos e glândulas vesiculares). O sedém provoca, portanto, dor e sofrimento, sem necessariamente causar lesões na pele ou esterilidade no animal. Da mesma forma as esporas, utilizadas para estocar os animais durante a montaria, mediante seguidos golpes aplicados pelo peão no baixo-ventre e no pescoço do animal, implica em maus tratos. Quanto às provas de laço, típicas das vaquejadas, não raras vezes ocasionam deslocamento de vértebras, rupturas musculares e fratura de ossos dos animais perseguidos no brutal espetáculo de sadismo humano. Apesar disso tudo o Congresso Nacional aprovou, em favor daqueles que exploram esse tipo de empreendimento, duas leis que afrontam abertamente o dispositivo constitucional que protege os animais : a Lei n. 10.220/01, que equiparou o peão de rodeio a atleta profissional, referindo-se às provas de laço, montarias e vaquejadas como ‘práticas esportivas’ (art. 1o, § único)e, mais recentemente, a lei federal dos rodeios, permissiva do sedém macio e da espora romba, como se a crueldade pudesse ser desfeita por mera disposição de lei.
Em 1997 o Supremo Tribunal Federal havia julgado inconstitucional a farra do boi, não obstante os argumentos sociológicos invocados para que se reconhecesse a pretensa legitimidade dessa carnificina legada pelos imigrantes açorianos a seus filhos brasileiros. Desrespeitando a decisão Suprema, a Assembléia Legislativa de Santa Catarina, fazendo tabula rasa dos princípios elementares da moral e do direito, promulgou, em 4 de abril de 2000, a Lei 11.365, que ‘dispõe sobre a regulamentação da tradição açoriana conhecida como farra do boi’, desde que se realize em fazendas cercadas denominadas mangueirões e sem ocasionar maus tratos aos animais. Lamentando o fato de a decisão do STF estar sendo abertamente afrontada, a advogada Vânia Rall Daró deixou registrado o seu justo desabafo: “Infelizmente, apesar dessa proibição legal, é bem provável que nunca vejamos o fim da chamada farra do boi, pois aos políticos interessa fazer o jogo da situação; os religiosos acreditam que devemos respeito somente aos semelhantes; os intelectuais aplaudem-na – alguns até delas participam – como uma ´manifestação genuína do povo´; os cidadãos comuns, na sua costumeira indiferença, julgam que o sofrimento dos animais não lhe diz respeito; a imprensa, que poderia esclarecer o que se passa, não se preocupa em denunciar as atrocidades dessa diversão macabra. É uma pena, pois, se nessa farra os animais perdem a vida, nós, seres humanos, perdemos a dignidade” (in ‘Farra com Boi’, Jornal da Cidade, Bauru, 12/4/2001).
E os exemplos de crueldade consentida recaindo sobre os animais não cessam, pelo contrário, multiplicam-se em proporção geométrica. Circos que subjugam e subvertem a natureza dos bichos, transformando-os em mudos escravos. Zoológicos transformados em vitrines vivas, exibindo aos homens suas coleções de animais aprisionados. Touradas que cruzam as fronteiras ibéricas para difundir, em outros povos, uma cultura de violência. Fazendas de caça e competições de pesca que promovem a matança ´esportiva´ com o aval dos próprios órgãos incumbidos de proteger a natureza e os animais,aprovadas com chancela do ´desenvolvimento sustentável´.O mesmo acontece nos criadouros comerciais, em que praticamente qualquer animal – doméstico, exótico ou silvestre – pode ser criado para atender à demanda do requintado mercado gastronômico e da lucrativa indústria de produtos manufaturados, que produz e exporta artigos de couro e casacos de pele. Até a recente lei municipal paulistana da ‘posse responsável’ de animais domésticos (Lei n. 13.131/01), já aprovada, se de um lado obriga os proprietários de cães a providenciar RG animal,legitima o poder público – em contrapartida – a capturar e a exterminar os animais errantes e/ou abandonados, com possibilidade de destiná-los à experimentação, gerando, assim, uma situação de flagrante desigualdade. Admitir a matança generalizada dos animais recolhidos aos Centros de Controle de Zoonoses, sem que eles estejam infectados com moléstia incurável ou sem a comprovação técnica de sua periculosidade social, é confessar que a vida deles somente tem importância se, de alguma forma, servir aos interesses do homem. Decididamente, essa prática não se confunde com a eutanásia. Já nas hipóteses de maus tratos ou abusos cometidos contra animais destinados à tração ou ao transporte, o drama é o mesmo, com uma agravante:sua vedação esbarra em problemas de ordem social relacionados à pobreza. Se porventura o animal se afastar do modelo conceitual ou estético aceito pelo homem, como certos tipos de mamíferos, aves, batráquios, peixes e insetos, então o caminho estará aberto – caso ele seja vítima de uma agressão –para o reconhecimento, pela Justiça, do malfadado princípio da insignificância.
Conclui-se, nessa linha de raciocínio, que a Justiça atende – caso acionada – apenas 1% das situações de crueldade, o que não deixa de representar uma estatística desalentadora. Ignoram-se os maus tratos suportados pelos animais criados nas fazendas industriais e nas granjas, como se o mercado da carne justificasse os processos de contenção e de engorda impingidos a uma criatura viva que, em pouco tempo, se transformará em mero produto. Desconsidera-se, também, a necessidade da adoção de métodos alternativos à experimentação animal, muito embora a lei assim o preconize, tampouco da formação de comissões de ética realmente éticas nas universidades. Desconhece-se que o fenômeno biológico da dor não se traduz, necessariamente, em lesões físicas, mas em sofrimentos e fadigas decorrentes da compressão, da carga excessiva, dos adestramentos cruéis e de toda forma de tormento psíquico.Esquece-se que o animal de estimação, embora tantas vezes antropomorfizado, tem o direito de viver dignamente em companhia daquele que o trouxe para junto de si, na cidade que se tornou o seu habitat. Mas, lamentavelmente, mesmo nas infrações convencionais de autoria conhecida, a maioria das pessoas deixa de registrar ocorrência por desconhecimento da lei, indiferença, medo ou descrédito na Justiça, o que apenas eleva o índice de impunidade nos casos de violência contra animais.
4.O papel do Ministério Público
A história do direito ambiental brasileiro revela que, até um passado recente, pouco ou nada se fez para coibir a devastação da natureza ou proteger os animais de tantas agressões. Derrubaram-se matas e florestas sob a justificativa da expansão urbana ou em prol das pastagens, sem que se percebesse a dimensão dos danos causados à fauna silvestre, quando muitos bichos – perdido seu habitat – acabaram sucumbindo. O crescimento urbano aumentou, em contrapartida, o descaso e o abandono em relação aos animais domésticos. No campo, substituído o modelo pastoril agrícola pelo tecnológico, os animais de criação passaram a ter uma vida anti-natural e opressiva, aglomerados em recintos insalubres, para gerar aumento de produção.Era preciso que alguma Instituição, em face de tantas ignomínias e atrocidades humanas, assumisse a defesa do ambiente e dos animais maltratados. Coube ao Ministério Público – por força de dispositivos ordinários e constitucionais – exercer esse relevante papel, hoje consolidado pela Lei n. 9.437/85, que regula a ação civil pública. A legitimação do Parquet para representar os animais em juízo não é nova.Remonta ao decreto federal n. 24.645/34, da época do Governo Provisório de Getúlio Vargas,estabelecendo medidas protetivas aos animais na esfera civil e penal. Segundo o douto magistério do Procurador de Justiça Antonio Herman Vasconcellos e Benjamin, tal diploma – ainda em vigor -, traz em si “a primeira incursão não-antropocêntrica do século XX, muito antes da era do ambientalismo”. Oportuno lembrar que esse texto legal, ao prever a representação dos animais na relação processual (munus atribuído ao MP ou às sociedades protetoras), não os trata como coisa ou objeto, mas como legítimos sujeitos jurídicos.
Verifica-se, diante de tantos casos concretos, que a crueldade deliberada – apesar das leis permissivas de comportamentos cruéis – pode ser combatida, via obliqua, pela efetiva atuação da Promotoria de Justiça, de modo a tentar impedir, interromper ou, ao menos, minimizar a dor dos animais submetidos ao jugo humano. Deve o Ministério Público agir com sensibilidade e bom senso diante de cada situação, sem perder de vista que – do outro lado – está uma criatura que não pode se manifestar. E a luta contra as tiranias, contra a violência, contra a opressão, não distingue vítimas, caso contrário estar-se-ia compactuando com a arbitrariedade e a injustiça.O legislador constitucional, facultando ao MP a instauração de procedimentos para apurar qualquer ofensa aos direitos que lhe cabem proteger (art.129, III, CF), na qual se inclui a tutela da fauna, possibilitou ao Parquet o alargamento de seus horizontes institucionais. Desse modo, a atuação extrajudicial e preventiva, diante de um fato lesivo ou potencialmente lesivo – com objetivos transacionais e/ou pedagógicos, inclusive – permite ao promotor alcançar resultados mais rápidos e eficazes do que poderia obter pela via do processo, em que a variedade de recursos e o duplo grau de jurisdição acarretam, inevitavelmente, a morosidade do provimento judicial.
Na comarca de Guarujá, em 26 de abril de 2001, a Promotoria de Justiça celebrou um primoroso Termo de Ajustamento de Conduta com a municipalidade, impedindo a indiscriminada matança de animais sadios e dóceis pelo serviço de Controle de Zoonoses local, porque a maioria dos cães recolhidos pela carrocinha estava apta a receber tratamento veterinário ou, então, ser encaminhada à adoção. Esse tipo de ajustamento,que vem impedindo milhares de mortes desnecessárias, foi firmado também em relação às práticas de vaquejada,provas de laço e rodeio, proibidas naquela comarca litorânea. Em São José dos Campos, por sua vez, o Ministério Público instaurou procedimentos verificatórios de natureza preventiva e pedagógica para apurar, por exemplo, maus tratos em animais utilizados em serviços de tração (cavalos e jegues que puxam carroças), crueldade nas fazendas de criação de animais para consumo (marcação a ferro quente, descorna, derrabagem, castração sem anestesia e debicagem), abate cruel (matadouro que promove a jugulação cruenta) e experimentação animal (universidades que não adotam os métodos substitutivos).
Não é preciso muito esforço imaginativo, portanto, para enumerar hipóteses capazes de inspirar a atuação dos membros do MP que desempenham a função de curadores do ambiente e dos animais.
Dentre tantas medidas permeadas pelo ideal de justiça e pela ética da vida, algumas merecem ser lembradas: processar, na esfera penal e cível, aqueles que praticam crueldade em face de animais; opor-se aos espetáculos que se utilizam de animais para fins de diversão pública; exigir a utilização de métodos substitutivos à experimentação animal, evitando que a ciência perfaça, impunemente, a vivissecção; combater a criação de animais pelo método de produção intensiva, em que a avidez do lucro humano se sobrepõe ao martírio dos bichos confinados; lutar contra o abate religioso ou ritual, que submete o animal a atroz sofrimento; atuar contra a caça, seja ela de qual modalidade for, contra o contrabando de animais, contra a indústria de peles e a biopirataria;fomentar um processo de ressocialização dos homens, incutindo-lhes o respeito a vida em todas as suas formas; resgatar e reconhecer, enfim, a individualidade dos animais, como seres sensíveis que são, não apenas no contexto ambiental.
Importante ressaltar, ainda, que embora condenados a trabalhos forçados, às prisões perpétuas, ao matadouro, às arenas públicas, ao extermínio sistemático, aos arpões da indústria pesqueira, aos obscuros centros de experimentação, ao desprezo, ao abandono, dentre outras inomináveis atrocidades,os animais têm a capacidade de sentir e de sofrer. A ciência sabe que nossa diferença em relação a eles é apenas de grau, não de essência. Longe de representar apenas um componente essencial da natureza ou do bem-estar psíquico do homem, a fauna é, acima de tudo, um conjunto de criaturas sensíveis.
Parece cômodo rotulá-la como sendo mansa ou nociva, classificá-la em categorias, enquadrá-la em definições zootécnicas e defini-la em função do interesse humano. A garça-vermelha não é apenas uma ave brasileira de importância ecológica, mas, antes disso, um ser vivo. Também o mico-leão-dourado, embora reconhecidamente em extinção, é um primata que merece ser protegido como outro qualquer, porque dotado de sensibilidade. As capivaras e os búfalos, ainda que possam estar proliferando em regiões nas quais a interferência humana provocou desequilibrio ambiental, não merecem a execução sumária ordenada pela espécie dominante. Esse mesmo argumento se aplica aos animais domésticos, em que o critério da utilidade e da necessidade acabam se tornando salvo-conduto para sua incondicionada exploração. Em resumo, a política de proteção à fauna parece não se importar com as espécies enquanto tais, mas em face de uma possível utilidade – econômica, estética, alimentar, cultural, ecológica, etc – que os animais possa vir a ter em relação ao homem. Esquecida a ética, cabe aos promotores de Justiça lembrar-se de sua importância.
Hoje o MP reúne plenas condições para assumir a tutela jurídica dos animais, na tentativa de livrá-los das maldades, das torturas e dos sofrimentos que a humanidade lhes impõe. Nenhum outro órgão estatal possui à sua disposição instrumentos preparatórios como o inquérito civil e os PVs, a possibilidade de requisitar investigações e diligências técnicas para instruir eventual ação penal ou, mesmo, viabilizar desde logo ação civil pública. As ações cautelares, com pedidos de liminar, podem ser interpostas para impedir situações de maus-tratos a animais. Já os TACs, inspirados nos princípios da prevenção, têm como objetivo resolver problemas ambientais e correlatos sem necessidade de demanda judicial, com a vantagem de fazê-lo com maior rapidez e eficácia. Se os promotores de Justiça e os procuradores da República utilizassem todas as armas que a lei põe a seu alcance, em prol dos verdadeiros ideais de Justiça, talvez um mundo novo pudesse amanhecer, sem cabrestos, sem correntes, sem chibatas, sem degolas, sem incisões, sem extermínios, sem jaulas, sem arpões e sem gaiolas, em que se priorizasse a vida, a integridade física e a liberdade de todas as criaturas. A questão, enfim, não é apenas jurídica, mas de ordem filosófica. Enquanto se continuar ensinando às crianças que os animais existem para servir ao homem e que, como seres inferiores, merecem ser utilizados ou escravizados, dificilmente essa triste situação mudará. O filósofo norte-americano Tom Regan, cuja teoria ética em defesa dos animais considera-os como legítimos detentores de direito, enxergou – como ninguém -aquilo que os homens não querem ver: “Os animais não existem em função do homem… eles possuem uma existência e um valor próprios. Uma moral que não incorpore esta verdade é vazia. Um sistema jurídico que a exclua é cego”.
CONCLUSÕES ARTICULADAS:
1. Existe um inegável conteúdo ético no art. 225 § 1o, VII, da CF, que se direciona não apenas ao equilíbrio das espécies e/ou aos chamados bons costumes da coletividade, mas aos animais enquanto seres sencientes,capazes de vivenciar dores e sofrimentos, mesmo porque a Moral deve sempre estar acima do Direito;
2. O modelo econômico capitalista e o ritmo industrial de produção faz com que 99% das hipóteses de crueldade para com os animais seja deliberada, como se vê nos matadouros, nos espetáculos públicos de rodeios, circos e vaquejadas, nos centros de controle de zoonoses, nas competições de caça amadora e, principalmente,nas atividades relacionadas à experimentação animal e ao agronegócio;
3. A lei estadual paulista n. 10.470/99, permissiva da jugulação cruenta nos matadouros que servem ao mercado judaico e muçulmano, assim como a lei estadual catarinense n. 11.365/2000, que regulamenta a farra do boi em mangueirões, carecem de ética e de moralidade, uma vez que nenhum dogma religioso e nenhum costume ou tradição podem se legitimar com base na tortura e na crueldade;
4. Prática originária de um erro metodológico difundido pela doutrina mecanicista, a vivissecção submete animais a procedimentos atrozes, devendo ser devidamente fiscalizada por Comissões de Ética e substituída por métodos alternativos preconizados pela lei ambiental, caso contrário a experimentação poderá se traduzir em crime;
5. O Ministério Público é a instituição melhor preparada para exercer a tutela jurídica dos animais, cabendo-lhe, no exercício desse mister, instaurar inquéritos civis e procedimentos verificatórios, celebrar termos de ajustamento de consulta, propor ação civil pública, oferecer denúncias e, se o caso, sugerir transações penais ou medidas pedagógicas que suscitem, no infrator,o respeito pela natureza e pela vida.
Laerte Fernando Levai é integrante do Ministério Público do Estado de São Paulo, é promotor de Justiça em São José dos Campos, com atuação na área criminal, ambiental e defesa dos animais. Especialista em Bioética pela Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, da USP. Vice-presidente do Instituto Abolicionista Animal. Autor do livro “Direito dos Animais” (Editora Mantiqueira, 2004). Também aprecia literatura, sobretudo a arte poética.
Fonte: Agencia de Notícias de Direitos Animais